mulher negra segura livro

Quilombola lança livro baseado em vivências de sua própria comunidade

Do Quilombo São Pedro, em Santa Maria de Itabira (MG), a psicóloga e escritora Jeanyce Araújo lançou o livro de contos Memórias Quilombolas

Por Beatriz de Oliveira

06|09|2024

Alterado em 10|09|2024

Do Quilombo São Pedro, localizado em Santa Maria de Itabira (MG), a psicóloga e escritora Jeanyce Araújo acaba de lançar seu primeiro livro “Memórias Quilombolas”. A produção independente é resultado do encontro da autora com o universo da escrita e narra, através de contos,o processo de se reconhecer enquanto uma mulher quilombola, iguarias da culinária quilombola e práticas de benzimento que cuidam da saúde mental das mulheres.

O lançamento do livro aconteceu no dia 18 de agosto, no Quilombo São Pedro. “A comunidade ficou empoderada, se sentindo importante porque alguém da própria comunidade contou as suas histórias”, relata. O livro de contos é dividido em cinco capítulos: “Ancestralidades”, “A vida fora do quilombo”, “Passou dessa para melhor”, “Banana, nosso ouro” e “Embaraços da vida”.

GALERIA 1/5

Lançamento do livro ocorreu no Quilombo São Pedro © arquivo pessoal

Jeanyce Araújo é escritora e psicóloga © arquivo pessoal

Memórias Quilombolas é um livro de contos © arquivo pessoal

Jeanyce Araújo ao lado dos pais © arquivo pessoal

O Quilombo São Pedro está localizado em Santa Maria de Itabira (MG) © arquivo pessoal

A ideia para a escrita da obra surgiu durante a realização de seu mestrado em Psicologia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Jeanyce sentia receio de escrever a dissertação do curso; então, iniciou oficinas de escrita, onde desenvolveu uma nova relação com as palavras. Certa vez, surgiu um edital para publicação de obras literárias e a quilombola decidiu escrever um livro de contos. Apesar de não ter passado no edital, decidiu, tempos depois, publicá-lo de forma independente.

O (re)encontro com a escrita

A partir da realização das oficinas, Jeanyce Araújo resgatou a sua relação com a escrita no cotidiano familiar. “Em todas as brigas que eu e minha mãe tínhamos, a gente trocava cartas. Minha vó também escrevia bilhetes para mandar recado. Então, a escrita é parte do povo negro sim. A gente é povo de escrita e de oralidade”, diz.

Também nessa época, a quilombola passou a explorar a literatura de mulheres negras, como Conceição Evaristo, Eliane Alves e Carolina Maria de Jesus. “Com 35 anos de idade, eu começo a ler mulheres negras e isso me transforma subjetivamente, eu começo a me sentir empoderada”.

Na criação do Memórias Quilombolas, Jeanyce diz que aprendeu a enfrentar as dificuldades que a escrita propõe, e que a partir disso viveu um processo de cura, no encontro com a literatura afrocentrada. Também destaca a contribuição de seus familiares na construção da obra: a quilombola ligava para eles para relembrar nomes e situações que as inspiraram na escrita dos contos.

Reconhecimento enquanto mulher quilombola

Além de histórias inspiradas nas vivências dos moradores do Quilombo São Pedro, o livro de Jeanyce tem contos baseados em situações pelas quais ela mesma passou. É o caso do seu reconhecimento enquanto mulher quilombola.

Durante seu mestrado em Alagoas, ela estava animada para conhecer o Quilombo dos Palmares, localizado na região de Serra da Barriga, onde hoje existe o município União dos Palmares. Chegando lá, encontrou um local muito parecido com o qual cresceu: o Quilombo São Pedro, que naquele momento ainda não era certificado como comunidade quilombola.

Até aquele momento, Jeanyce se considera descendente de quilombolas. Mas ao conversar com pessoas da região, todas a entendiam como de fato uma mulher quilombola. A partir desse episódio, a escritora entrou numa crise de identidade e passou a investigar as suas próprias raízes.

Depois disso, passou a se reconhecer como uma quilombola. “Essa sou eu mesma desde sempre, não tem um devir quilombola, a gente é desde sempre. Isso está marcado na desobediência, eu nunca me contentei com os ensinamentos brancos, sempre fui aquela aluna revoltada. Então, eu fui entendendo essa desobediência como essa identidade do quilombo, porque o quilombo é um lugar que não foi colonizado”, relata.

Mais um ponto trazido no livro é a potência dos quilombos. “As pessoas brancas que pesquisam sobre nós, tendem a colocar o quilombo como lugar de vulnerabilidade social, mas o quilombo não está neste lugar. O quilombo tem sido um espaço, que tem sido despotencializado. É um lugar de muita criatividade, inventividade, conhecimento e ciência”.